Eu não parava de me lembrar dos sons das motocicletas, não eram exatamente eles que me cercavam naquele momento, mas minha lembrança insistia nos motores. Sempre gostei dos sons das máquinas. Pensava nos sons das motocicletas e em intermináveis formas sonoras, estava sem dinheiro. Em outras épocas isso era um problema menor, afinal tendo o do cigarro já me resolvia bem.
     Sempre faltava alguma coisa para completar o serviço, eu tinha um violão e duas baquetas. Fiz muito com esse trio, apesar de que ao criar algo com o violão teria de ficar relembrando para tocar as baquetas no sofá. Era bateria com memória de violão. Divertido pensar nisso, todos os outros sons: vizinhos brigando, carros, pássaros e árvores eram também a minha música. Enquanto só o violão soava o resto dos sons eram a minha bateria. Eu tinha apenas 9 anos e não sabia bem como tudo poderia se adequar tão bem aos meus acordes infantis. Muitos anos depois John Cage resolveu essa questão.
     Um tipo de melodia pairava na mente e me deixava muito assustado, cantarolava sem parar o dia inteiro. Cantava misturas do que ouvia no rádio e do que inventava. Era um quintal grande cheio de pedaços de ferro, árvores, peças de motores de meu pai, roupas no varal e um muro alto que me protegia apenas os olhos. Queria sempre registrar tudo, arquivar – essa minha mania de organização sempre esteve presente, ainda que do meu jeito – para ter a memória de tudo ao meu ouvido. As fotografias não tem som, eu queria uma fotografia sonora (audiografia) ou um registro apenas para fins de louvar o passado.
     Depois de muito tempo consegui um gravador, me faltavam as fitas. Construí um tarol ou caixa com uma calota de Vemaghet amaçada e algumas britas jogadas por cima dela. O som era lindo, uma perfeita caixa de bateria com a afinação bem apertada. Faltava ainda o grave do bumbo, minha necessidade era rítmica. Na igreja meu pai me sentava no colo do baterista, muitas vezes ele mesmo, para aprender como era uma bateria de verdade. Meus pés não alcançavam o pedal do bumbo, então o jeito era usar o surdo para fazer o grave. No quintal havia uma escada de madeira feita por meu pai, eu sentei em um dos degraus com as pernas viradas para o vão da escada e comecei a batucar, estava ali o meu bumbo/surdo.
     Todos os dias depois da escola eu me sentava no degrau/banco com minha calota cheia de britas e com minhas baquetas ficava tocando por horas. O sol era sempre anúnciado por minha mãe como um perigo e eu o via como a luz do evento. Os vizinhos colocavam os cotovelos no muro para ver aquele batuque e nada diziam. Eu acreditava que estavam gostando, pois também não reclamavam.
     Quando chegava o aniversário de algum amigo da rua eu era convidado a tocar o meu batuque durante a festa. No lugar do degrau/surdo eu usava baldes e panelas. A turma adorava me ver tocar, talvez por ser o único da rua a preferir fazer música a jogar futebol ou qualquer outra coisa. Comecei a ensinar meus amigos a batucar, a rua virava um inferno sonoro nas tardes de sábado com quase vinte crianças batucando latas, panelas, calotas com britas e muitos baldes. Acho que todos os baldes de nossas mães foram destruidos nessa época. Erámos a rua mais barulhenta do bairro.
     Memória confusa a minha, muitas vezes penso em algo e isso me bate de uma forma tão estranha que minha reação é muito caótica. Escrever ouvindo música é uma forma de me manter focado pelo menos nos sons. Escrita caótica também não? Os assuntos passam como se fossem mesmo ruídos rápidos. Que seja! Infância sonora a que tive e que distribuí para muitos amigos que hoje ainda me lembram de que fui eu a ensinar o primeiro acorde ou o primeiro batuque. O violão do meu pai estava sempre na rua na mão de alguém tentando tocar alguma coisa. As rodas de violão eram para aprender e não para tocar a música preferida, pelo menos foi assim durante muito tempo. Até cair os discos do Legião Urbana em nossas mãos, acho que depois disso quase todas as ruas ficaram um pouco mais sonoras.
     Percebo que minha primeira banda era apenas eu querendo fazer mais do que podia sozinho. E hoje, depois de não sei quantas bandas,  o que sou se não exatamente a mesma coisa. Talvez só fui perceber isso em 2008, quando inventei o Barulhista.
    E essa impotência que tenho sentido nos últimos dias me deixa ver claramente o quanto fiz e tenho feito, aos trancos e barrancos, para me manter junto aos barulhos. Uma necessidade absurda de movimentar tudo sem poder me mexer muito. Tendo às vezes que ver meu pinto se transformar em moeda cultural para conseguir um espaço que é meu. Se não havia gravador quando criança, hoje posso gravar tudo e reunir em um estúdio meu. Pouca coisa me faz tão feliz quanto estar no meio dos barulhos, criar sons, misturar momentos sonoros e transformá-los em momentos meus. Egoísmo sonoro? Acho que a palavra álbum seria perfeita nesse momento. Essa ardência que sinto quando diante de algo tão belo me vejo incapaz de guardar um pedaço para mais tarde absorver mais um pouco. Você deve pensar que tenho mil gravações de mil momentos, mas tenho muito pouco diante do que gostaria de ter. Se pudesse teria pelo menos uma hora de audio de todos os dias que vivi, porém a eletrônica ainda não era tão bondosa nos anos oitenta. Eu não tinha ideia que minha estética já estava impregnada de tal forma que garanto, o que faço hoje não é tão diferente do que eu fazia quando criança em relação a rítmica. Mesmo quando faço algo sem um pulso regular, penso o tempo todo em ritmo. Saudade de quando eu não era ninguém e não havia obrigação de ser alguém.
     Toda essa obsessão em produzir ou de ter algo pronto me vem como uma benção suja. Não tenho o menor carinho com minhas criações depois de prontas, entenda que esse abandonar a criatura sonora é a forma mais doce de se ter amor por quem vai ouvir. Digo: não tenho o menor carinho e ao mesmo tempo amo tudo que fiz e faço. É meio difícil de entender e sei que sou pseudo-ignorante o bastante para encontrar dificuldade também em explicar. Conversando com alguns amigos consigo me fazer entender sobre esse assunto. Acho que essa música do Lobão me faz tão bem que me deixa com as mãos fora desse teclado.
     Todos os feriados cercam minha janela, implorando para que eu eu veja sempre da mesma forma tudo que ainda está por lá. Tive sete janelas até hoje, contando com as que aluguei. Sempre com algum desenho, adesivo ou não, preso nos vidros. As de hoje, pois são duas, tem flores e cores. O que ainda assim é um desenho. Quando me mudei para essa casa aos nove dez anos (aproximadamente) herdei alguns adesivos do morador antigo. Eram muitos, quase todos de marcas de skate e surf, ficavam colorindo o quarto como uma paleta do photoshop pedindo executar sua função. Mostrava aos primos, muitos deles eram proibidos de colar qualquer tipo de coisa nas paredes ou janelas, com orgulho a minha herança. Ficávamos por horas nos passando por surfistas que estavam de férias em algum litoral. Sorte nossa ter um video-game com cartuchos de jogos de verão, que na verdade se chamava California Games onde se podia jogar seis opções: patins, bmx bike, embaixadas, surf e skate. Engraçado pensar que foi meu primeiro contato com a eletrônica em música.